quarta-feira, 13 de março de 2013

Violência sobre rodas

Há algum tempo venho matutando - e protelando - para escrever algo sobre meu gosto de pedalar. Nesse período, alguns temas vieram à mente. Pensei em falar sobre o prazer de pedalar, o sentimento de liberdade ao rodar por diferentes bairros, parques e avenidas da cidade;pensei em tratar sobre as diferenças entre criar ciclofaixas de lazer e desenvolver uma estrutura de transporte urbano para bicicletas?; ou simplesmente escrever um manifesto pelo uso das  magrelas - alguém ainda chama as bikes assim? - como prática de esporte e, ao mesmo tempo, solução para um sistema de transporte completamente falido. Dava até para fazer um textinho sobre como elas servem até para o turismo, ao menos para quem aprecia desbravar pontos famosos das cidades sem a necessidade de parar o carro em estacionamento ou passar rápido sem observar com mais atenção.

Certamente há muito a se falar. Inclusive, há um assunto que preferia não escrever. Aquele que diz respeito à convivência entre bicicletas e veículos motorizados no trânsito. Uma discussão que volta e meia retorna ao mesmo ponto de partida, geralmente recomeçando com mais um caso trágico de ciclista atropelado e uma posterior divisão entre os defensores radicais dos pedais, os cicloativistas, e o cidadão comum, os quais vou levar em conta apenas os que tentam enxergar além do próprio para-brisa. O percurso é quase sempre o mesmo e, invariavelmente, chega-se pelo mesmo relativismo à constatação mais trivial: a estupidez existe atrás do volante do automóvel e também sobre o selim da bicicleta.

Por essas e outras, não queria me meter nessa trilha tortuosa temendo dar voltas inúteis e soar repetitivo. Até porque como alguém que gosta mais de pedalar do que dirigir, minha inclinação natural poderia ser apontar que o local mais fácil para se encontrar um imbecil na cidade grande é dentro de um automóvel. Principalmente, se for em um desses "utilitários" grandões, que em uma cidade na qual falta espaço, certamente devem ter alguma outra coisa útil que não seja o tamanho. Nem a truculência com que alguns trafegam.

Mas no último final de semana fiquei chocado como nunca. Oura vez, um ciclista foi atropelado na Avenida Paulista, onde frequentemente gosto de passear. Mas, confesso: evito pedalar ali porque não vejo condições mínimas de segurança. É verdade que dessa vez o ciclista não morreu. Mas em virtude do choque brutal contra o automóvel, seu braço foi decepado pelo impacto e acabou preso ao veículo. Sem prestar socorro á vítima, o motorista do carro fugiu e se desfez do braço jogando-o em um córrego.

Se não fosse mais uma produção melancólica da vida real em São Paulo, o enredo passaria sem sobressaltos por uma cena de Mad Max, um dos filmes violentos de Mel Gibson que mostra o mundo em disputa sangrenta após a devastação completa pela guerra. É o trânsito de São Paulo cada vez mais parecido com a "cúpula do trovão", onde só um chegará vivo ao seu destino.  

O carro, menos do que um meio de transporte, é cada vez mais símbolo de um plano urbanístico fracassado. Peça de um sistema de transporte em colapso. Paradoxalmente, cada vez mais confortáveis, espaçosos e conectados à tecnologia, no dia a dia duro da cidade grande os automóveis são reduzidos a meros entulhos de lata enfileirados, gerando dezenas ou centenas de milhões de horas improdutivas que contrariam a própria noção capitalista que os sustenta e os estabeleceu na cultura como símbolo de sucesso, ostentação e potência. Inclusive a sexual. Na realidade fora das propagandas, carros hoje podem ser vistos também como desperdício de tempo, de paciência e de saúde.

Mas como todo sistema de rodas e engrenagem mais complexo, a tensão na convivência do trânsito vai além da singela dicotomia carro-bicicleta. E é por isso que não adianta nenhum dos lados partir para o confronto. Como ensinou o escritor americano Stephen Crane, definitivamente não há glórias na guerra, apenas uma mancha de sangue. E nessa guerra civil do trânsito, que infelizmente parece já ter começado, as armas estão postas sobre rodas. Justamente a roda, invenção do homem que marca um dos pontos de partida em direção à civilização e ao conhecimento, se tornou o epicentro de uma discussão que gira em círculos sem chegar a uma solução. Vil ironia, é sobre as rodas que o ser humano comete suas mais estúpidas barbáries. Sobre rodas ele nega sua própria evolução.

Mas como um adepto das voltas de bike (não me acostumo a grafar assim, mas vá lá), achei que poderia escrever para tentar ao menos encontrar algumas explicações. Pedalando semanalmente nos últimos anos, tenho notado alguns fatos que podem dar evidências sobre o real problema - veja bem, não é uma pesquisa, apenas percepção.

Sinto que há um aumento dos motoristas de automóveis que respeitam o espaço do ciclista. Alguns até oferecem prioridade na passagem e ultrapassam com cuidado, atentando-se a uma distância segura. Sinceramente, acredito que há uma parcela que parece disposta a "aceitar" a divisão da via pública. Essa é a boa notícia.

Por outro lado, nas ciclofaixas e nos parques, justamente onde há uma proposta clara de lazer, percebo um aumento considerável de ciclistas mal educados, transportando para o pedal os mesmos sintomas e vícios que já estamos calejados de ver sobre quatro rodas. Em lugares onde se poderia reinar a tranquilidade, não é difícil se deparar com um ciclista energúmeno. Para chegar sabe-se lá onde mais rápido, faz ultrapassagens e manobras arriscadas e coloca em risco seus pares. Muitas vezes ignoram até crianças em suas bicicletas com rodinhas.

Como sou também um pedestre assíduo, outras cenas desse tipo não me escapam. Ciclistas também atropelam as regras de trânsito e do bom senso ao andar em alta velocidade sobre calçadas cheias de passantes; enfrentam a contra-mão de vias principais expondo ainda mais a própria fragilidade ou, ainda, atrapalham outros ciclistas que tentam, por sua própria segurança, seguir o fluxo normal como sugere o código de trânsito. Sobre uma bicicleta, alguns ameaçam  pedestres da mesma forma que talvez fariam com outros ciclistas se estivessem em um carro.

Ah, e a pressa e a impaciência transcorrem exatamente como no trânsito "tradicional". Posso estar exagerando, mas até as quedas parecem aumentar desde a primeira vez que percorri uma dessas ciclofaixas e, em pouco tempo, não me estranharia se as desavenças - com ou sem palavrões, indo ou não às vias de fato,-  começassem a surgir a cada nova barbeiragem ciclística.

Por isso, a ferrugem que corrói  continuamente a estrutura da convivência pacífica não está somente em quem anda de carro. Tampouco só nos ciclistas (ou nos cicloativistas). Não podemos levar adiante o tema como uma luta de classes. Admito que talvez não tenha todas as respostas para dar visão a quem dirige com olhos vendados pelo individualismo exacerbado ou simples ignorância.

Só não quero ficar parado no meio da pista. Acredito que a redução de carros nas ruas tornará o sistema de transporte melhor, deverá diminuir os dados trágicos e, quem sabe, abrir espaço para um sistema de transporte menos estressante. E  muita gente também já se deu conta sobre a inviabilidade dos carros e, por isso, está tentando se adaptar a uma bicicleta - que bom! Logo, o tráfego delas tende a crescer cada vez mais e será preciso fazer esse contingente entender que ciclistas também precisam cumprir suas obrigações. Seja para não prejudicar aqueles que andam a pé, seja para ter consciência de sua fragilidade frente aos seus colegas de lata e aço e a importância do uso de certos equipamentos e do respeito a algumas regras de segurança.


E nesse momento, luz amarela, sinto desapontar o leitor porque após andar todo esse caminho, posso chegar a um lugar comum. Isso porque minha conclusão é de que o caminho mais curto para civilizar nosso trânsito está de novo naquela via tão pouco cuidada da sociedade brasileira: a educação.

Quem sabe falando das diferenças dos direitos e deveres de carros, bicicletas e pedestres desde a escola infantil. Quem sabe com campanhas na Internet, na TV, nos parques, nas ciclofaixas e onde mais for necessário. Quem sabe com mais fiscalização e orientação para quem comete abusos dentro dos carros ou em cima das bicicletas.

Um bom começo já seria ver não apenas ciclistas protestando quando alguém sobre uma bicicleta é atingido. Afinal, muita gente ainda finge que um ciclista atropelado não lhe diz respeito. Todos somos vítimas de um trânsito violento e mesmo aqueles que nunca sentaram a bunda em um selim precisam se comover, se indignar e se for o caso, andar pelados juntos aos ciclistas nas ruas da cidade. Do seu lado, os ciclistas também podem começar a ensinar seus colegas sobre duas rodas como se comportar de maneira menos desorganizada nas ruas, calçadas e ciclovias.

Certamente há uma longa estrada pela frente. Só não dá mais para ver tanta gente morrendo sobre rodas e nada sair do lugar.